28 maio, 2010

Os caçadores de segunda-feira à noite.


“Não podemos evitar. Nas tardes de domingo e nas noites de segunda-feira, no outono de cada ano, abandonamos tudo para observar as pequenas imagens em movimento de 22 homens – colidindo uns com os outros, caindo, levantando, e chutando um objeto alongado feito com a pele de um animal. De vez em quando, tanto os jogadores como os espectadores sedentários são levados ao êxtase ou ao desespero pela evolução do jogo. Em toda parte, nos Estados Unidos, as pessoas (quase exclusivamente homens), paradas diante das telas de vidro, torcem ou resmungam em uníssono. Descrito dessa forma, parece estúpido. Mas, quando se adquire o gosto pela coisa, é difícil resistir, e falo por experiência própria.

Os atletas correm, saltam, batem, deslizam, lançam, chutam, derrubam – e há uma emoção em ver os humanos fazerem tudo isso tão bem. Eles brigam entre si até caírem no chão. Gostam de agarrar, tacar ou chutar um veloz objeto marrom ou branco. Em alguns jogos, tentam levar o objeto para o que é chamado de “gol”; em outros, os jogadores se afastam e depois retornam “para casa”. O trabalho de equipe é quase tudo, e admiramos como as partes se encaixam para formar um todo triunfante.

Mas essas não são as habilidades com as quais a maioria de nós ganha o pão diário. Por que nos sentiríamos compelidos a observar pessoas correndo ou dando golpes? Por que essa necessidade aparece em todas as culturas? (Os egípcios, persas, gregos, romanos, maias e astecas antigos também jogavam bola. O pólo vem do Tibete.)

Há craques dos esportes que ganham cinqüenta vezes o salário anual do presidente; outros que são eleitos para altos cargos depois de aposentados. São heróis nacionais. Por que exatamente? Há algo nessa questão que transcende a diversidade dos sistemas político, social e econômico. Algo primevo nos atrai.

A maioria dos esportes mais importantes está associado a uma nação ou cidade, e eles contêm elementos de patriotismo e orgulho cívico. O nosso time nos representa – o lugar onde vivemos, o nosso povo – contra aqueles outros sujeitos de um lugar diferente, habitado por um pessoal desconhecido, talvez hostil. (É verdade, a maioria dos “nossos” jogadores não pe realmente do lugar onde jogam. São mercenários, que em sã consciência regularmente abandonam cidades adversárias por vencimentos mais rendosos. Um pirata de Pittsburgh se regenera e passa a ser um Anjo da Califórnia; um Padre de San Diego é promovido a Cardeal de St. Louis; um Guerreiro de Golden State é coroado Rei de Sacramento. De vez em quando, todo um time decide migrar para outra cidade.)

Os esportes competitivos são conflitos simbólicos, mal disfarçados. Isso não é uma idéia nova. Os cherokees chamavam sua antiga forma de lackrosse de “o irmão pequeno da guerra”. Ou, passando a palavra para Max Rafferty, ex-superintendente da Instrução Publica da Califórnia, que, depois de chamar os críticos do futebol universitário de “malucos, desmiolados, comunistas, beatniks cabeludos e falastrões”, declara: “Os jogadores de futebol [...] possuem um espírito de luta claro e luminoso que é os próprios Estados Unidos”. (Isso merece reflexão.) Um sentimento freqüentemente citado do falecido técnico de futebol profissional Vince Lombardi é que o importante é vencer. O ex-técnico dos Washington Redskins, George Allen, dizia o mesmo da seguinte maneira: “Perder é como morrer”.

Na realidade, falamos de ganhar ou perder uma guerra tão naturalmente como falamos de vencer e perder um jogo. Numa propaganda televisiva de recrutamento do Exército dos Estados Unidos, vemos as conseqüências de um exercício de guerra armada, em que um tanque destrói outro. Como slogan, o comandante do tanque vitorioso diz: “Quando vencemos, todo o time vence – e não apenas uma pessoa”. A conexão entre o esporte e o combate fica bem clara. Sabe-se que os fãs (a palavra é a abreviatura de “fanáticos”) do esporte têm cometido agressão, e às vezes homicídio, quando escarnecidos por causa de um time perdedor; ou quando não podem torcer por um time vencedor; ou quando sentem que o juiz cometeu uma injustiça.

Em 1985, o primeiro-ministro britânico foi obrigado a denunciar o comportamento embriagado e desordeiro dos fãs de futebol britânicos que atacaram um contingente italiano por ter o atrevimento de torcer pelo seu próprio time. Muitos foram mortos, quando as arquibancadas vieram abaixo. Em 1969, depois de três jogos difíceis de futebol, os tanques de San Salvador atacaram portos e bases militares em Honduras. Nessa “Guerra de Futebol”, as baixas chegaram aos milhares.

Os homens das tribos afegãs jogavam pólo com as cabeças cortadas de antigos adversários. E há seiscentos anos, no lugar em que hoje é a Cidade do México, havia uma quadra de jogar bola em que os nobres magnificamente vestidos observavam a competição de times uniformizados. O capitão do time perdedor era decapitado, e os crânios dos outros capitães perdedores eram exibidos em grades.

Vamos supor que você esteja mexendo à toa no botão da sua televisão e encontre uma competição em que não tenha nenhum investimento emocional particular – vamos dizer, uma partida amistosa de voleibol entre Myanmar e Tailândia. Como é que você decide para quem torcer? Mas espere um minuto: para que torcer por algum dos times? Por que não se divertir apenas observando o jogo? A maioria de nós tem problemas com essa postura distanciada. Queremos tomar parte da competição, queremos nos sentir membros do time. O sentimento simplesmente bis arrebata, e começamos a torcer “Vamos, Myanmar!”. No início, nossa lealdade pode oscilar, primeiro incitando um dos timer e depois o outro. Às vezes torcemos pelo que está perdendo. Outras, vergonhosamente, até viramos casaca, abandonando o perdedor e torcendo pelo vencedor, quando o resultado se torna claro. (Quando há uma série de campeonatos perdidos, a lealdade dos fãs tende a se transferir para outro time.) O que procuramos é a vitória sem esforço. Desejamos ser envolvidos em algo parecido com uma guerra pequena, segura e bem-sucedida.

[...]A espécie humana tem centenas de milhares de anos (a família humana tem vários milhões de anos). Levamos uma vida sedentária – baseada no cultivo da terra e na domesticação dos animais – apenas nos últimos 3% desse período, no qual se encontra registrada toda a nossa história. Nos primeiros 97% de nossa existência sobre a Terra, quase tudo o que é caracteristicamente humano veio a ser. Assim, um pouco de aritmética sobre a nossa história sugere que podemos aprender alguma coisa sobre aqueles tempos com as poucas comunidades de caçadores-coletores que ainda restam sem terem sido corrompidas pela civilização.

[...]Por isso, considerem o seguinte: durante milhões de anos, nossos ancestrais masculinos andaram correndo por toda parte, atirando pedras nos pombos, perseguindo filhotes de antílopes e agarrando-os em luta corpo a corpo, formando uma única linha de caçadores a correr e gritar contra o vento para aterrorizar um bando de javalis perplexos. Imaginem que a vida deles depende de seu talento de caçador e do trabalho em equipe. Grande parte da sua cultura é tecida no tear da caçada. Bons caçadores são bons guerreiros. Então, depois de um longo período – digamos, alguns milhares de séculos -, uma predisposição natural tanto para a caça como para o trabalho em equipe vai aparecer em muitos meninos recém-nascidos. Por quê? Porque caçadores incompetentes e pouco entusiasmados têm prole menor. Não acho que a maneira de lascar uma pedra para formar a ponta de uma lança ou o modo de emplumar uma flecha esteja em nossos genes. Tudo isso é ensinado ou inventado. Mas o gosto pela caça... aposto que isso faz parte de nosso hardware. A seleção natural ajudou a transformar nossos ancestrais em caçadores magníficos.

A evidência mais clara do sucesso do estilo de vida caçador-coletor é o simples fato de que se espalhou por seis continentes e durou milhões de anos (para não falar das tendências à caça dos primatas não humanos). Esses números têm um profundo significado. Depois de 10 mil gerações em que a matança de animais foi a nossa defesa contra a ameaça de morrer de fome, essas inclinações ainda devem estar conosco. Sentimos vontade de empregá-las, mesmo vicariamente. Os esportes de equipe nos fornecem um meio de satisfazer esse desejo.

Alguma parte de nosso ser deseja se juntar a um pequeno grupo de irmãos para realizar uma aventura ousada e intrépida. Podemos observar essa característica nos jogos de computador e nos RPGs que fazem sucesso entre os meninos pré-púberes e adolescentes. As virtudes viris tradicionais – a taciturnidade, a engenhosidade, a modéstia, a precisão, a coerência, o profundo conhecimento dos animais, o trabalho em equipe, o amor pela vida ao ar livre – eram todas comportamento de adaptação nos tempos dos caçadores-coletores. Ainda admiramos essas características, embora quase tenhamos nos esquecido da razão.

Além dos esportes, há poucas saídas para dar vazão a essas tendências. Nos meninos adolescentes, ainda podemos reconhecer o jovem caçador, o aspirante a guerreiro – pulando pelos telhados das casas; andando sem capacete em motocicletas; criando encrenca para o time vencedor numa celebração depois do jogo. Na ausência de um controle moderador, esses antigos instintos podem ter conseqüências um pouco desastrosas (embora a nossa taxa de homicídios seja mais ou menos igual à dos caçadores-coletores que ainda existem). Tentamos assegurar que qualquer gesto residual pela matança não se volte contra os humanos. Nem sempre temos sucesso.

Penso no poder desses instintos de caça e me preocupo. A minha preocupação é que o futebol das noites de segunda-feira não seja suficiente para o caçador moderno, vestido de macacão, jeans ou um terno de três peças. Penso naquele antigo legado de não expressar os novos sentimentos, de manter uma distância emocional daqueles que matamos, e isso tira do jogo parte da diversão.

Os caçadores-coletores em geral não representavam perigo para si mesmos, por vários motivos: suas economias tendiam a ser saudáveis (muitos dispunham de mais tempo livre do que nós); tinham poucas posses por serem nômades, assim quase não havia roubo e experimentavam muito pouca inveja; a ganância e a arrogância eram consideradas não só males sociais, mas também quase doenças mentais; as mulheres tinham um poder político real e tendiam a ser uma influência estabilizadora e moderadora, antes que os meninos começassem a se ocupar das flechas envenenadas; e, se crimes sérios fossem cometidos – vamos dizer, assassinato -, o bando, coletivamente, julgava e punia o criminoso. Muitos caçadores-coletores organizaram democracias igualitárias. Não tinham chefes. Não havia hierarquia política ou corporativa que sonhassem galgar. Não havia ninguém contra quem se revoltar.

Assim, se estamos a algumas centenas de séculos do período em que gostaríamos de estar – se (por nenhuma falha nossa) nos descobrimos numa era de poluição ambiental, hierarquia social, desigualdade econômica, armas nucleares e perspectivas em declínio, com emoções do Plistoceno, mas sem as salvaguardas sociais do Plistoceno -, talvez possamos ser desculpados por um pouco de futebol nas noites de segunda-feira.”

Carl Sagan.

0 Copos(s):